«A leitura destes "fotogramas" permite-nos apreender a dinâmica de guerra, complexa e extremamente emaranhada, que está a despedaçar a Síria, como Estado e Nação, e cujos estilhaços atingem, porventura de forma irreversível, toda a região do Médio Oriente.» (Jorge Sampaio)
Quatro anos ininterruptos de guerra civil e mais de 150 mil mortos depois, a Guerra Síria tornou-se a maior tragédia do século XXI. Chamar-lhe crise é insultuoso — crise é o que vive Portugal. A Síria vive uma calamidade humana, e o pior é que não tem fim à vista. O território está minado por terroristas de todo o mundo — cinco mil dos quais são europeus —, o que faz da Síria a maior plataforma jihadista da actualidade. No tabuleiro sírio, cruzam-se todas as grandes peças do xadrez internacional e, enquanto a guerra evolui, cada uma delas define o raio de acção, as linhas vermelhas e os mínimos de entendimento, num autêntico circo de feras. Tendo a Síria como centro de gravidade, este livro acompanha ... as intensas convulsões dos últimos anos no Norte de África e no Médio Oriente: as motivações da «Primavera Árabe», a ascensão e o equilíbrio entre as potências sunitas e xiitas, os posicionamentos das grandes potências externas, o papel das organizações internacionais, o roteiro dos grupos islamitas radicais, e o foco de jihadismo na Europa, que o ataque ao
Charlie Hebdo aproximou do caos sírio. Assistimos em directo ao início da guerra civil na Síria, mas ninguém sabe como ela vai acabar. Pior: ainda ninguém consegue afirmar se algum dia esta guerra terá fim. As Nações Unidas definem‑na como «a maior tragédia do século XXI».
António Guterres, alto‑comissário para os Refugiados, considera‑a «a maior crise humanitária desde o Ruanda». Oito milhões de deslocados, quatro milhões de refugiados, mais de 220 mil mortos, muitos deles civis e crianças. Houve cidades, como Homs, cercadas mais de dois anos por militares do regime e grupos terroristas, impedindo que chegassem alimentos a milhares de pessoas que diariamente caíam desamparadas no chão. Regressaram a poliomielite e a tuberculose, espalharam‑se a difteria, a hepatite e a leishmaniose. Mais de cem mil crianças estão hoje reféns destas epidemias. Sessenta por cento da população tem menos de 20 anos de idade, mas é provável que grande parte dela esteja agora perdida nos escombros do conflito. A Guerra Síria ceifou abruptamente o futuro a duas gerações, separou famílias para sempre e desenhou no horizonte uma linha de regresso ao passado. O PIB definhou em média 15 por cento em cada um destes quatro anos de guerra, e mais de um terço do território está minado por terroristas de todo o mundo, transformando a Síria na maior plataforma jihadista da actualidade, à frente da Somália e do Afeganistão. Perto de cinco mil terroristas desse contingente estrangeiro são europeus.
A Síria não é a Líbia, onde Khadafi pôde ser caçado por uma coligação internacional sem que os interesses de cada um colidissem. A Síria não é a Tunísia, onde, apesar das divergências, há uma homogeneidade étnica capaz de moldar compromissos. A Síria não é o Egipto, onde os militares são a coluna vertebral do Estado e não permitem devaneios islamitas radicais. Na Síria, reina Assad e é com e contra ele que a guerra se trava. Quatro anos depois, o oftalmologista formado em Londres e tornado ditador continua no poder, mesmo que já não controle uma parte significativa do território. Que Síria sobrará dele é a pergunta para um milhão de dólares. No tabuleiro sírio, cruzam‑se todas as grandes peças do xadrez internacional: da Rússia aos EUA, do Irão a Israel, de França à Arábia Saudita, da China ao Qatar, do Reino Unido ao Líbano, da Turquia ao Egipto. E, enquanto a guerra evolui, cada uma delas define o seu raio de acção, as suas linhas vermelhas e os mínimos de entendimento num autêntico circo de feras. Quatro anos depois, pouco ou nada conseguiram. Quatro anos depois, é uma ilusão falar de «comunidade internacional». A Síria está por isso fatiada, ceifada, dilacerada, queimada, esquartejada, entre uma faixa sob o domínio de Assad e um território vastíssimo disputado por combatentes anti‑regime apoiados pelo exterior, tropas leais ao presidente e grupos terroristas cada vez mais bem treinados e armados. Desde que Mohamed Bouazizi, o vendedor de frutas tunisino, se imolou em Tunes, em Dezembro de 2010, em protesto contra a deterioração das condições de vida e o abuso policial, até às revoluções árabes que acabaram sequestradas pelo fundamentalismo islâmico, o mundo passou da euforia ao pânico num abrir e fechar de olhos. O optimismo deu lugar ao pessimismo, a pulsão democrática a fórmulas despóticas, a pretensão secularista ao sectarismo islâmico, os moderados aos radicais, os liberais aos terroristas, e a crença na liberdade ao martírio dos cobardes. Água Prateada, o extraordinário e perturbador documentário realizado por Ossama Mohammed e Wiam Simav Bedirxan, acumula precisamente essa palete de transformações dadas pela evolução do conflito. Feito com imagens captadas por anónimos com os seus telemóveis, despe a guerra até o mais baixo nível de crueldade, destruição e solidão. No fundo, esses vídeos são pequenas crónicas despidas de edição, com a cola a entrar depois de um fino diálogo entre os realizadores — Mohammed em Paris, Bedirxan em Homs —, os quais completam uma reflexão sobre essa mesma distância: entre quem fala do seu país estando no exílio e quem vive cercado por imagens dramáticas. No cruzamento destas perspectivas, uma criança percorre os escombros à procura de flores. Este livro acaba por ser também um cruzamento entre perspectivas. A de quem está à distância, mas conhece alguns dos países em análise. A de quem oscila na interpretação dos factos à medida que o entusiasmo foi dando lugar ao pessimismo. A de quem faz da crónica o seu vídeo de telemóvel, necessariamente um retrato disparado num determinado momento. A de quem procura um olhar analítico e frio, mas não deixa de se envolver. Por isso mesmo não alterei uma só opinião publicada: quis espelhar essa dificuldade em acompanhar quase diariamente transformações tão inesperadas como imprevisíveis, quis registar que uma crónica é o fotograma de um instante, quis que fossem totalmente transparentes as minhas interpretações, conjecturas e até alguma futurologia. Terei acertado em algumas ocasiões, falhei certamente em muitas outras. Não quis, no entanto, esconder essas opções, correndo o risco de, como aconteceu com a esmagadora maioria dos analistas que acompanhou a defunta «Primavera Árabe», ser abalroado permanentemente pela força dos acontecimentos no Norte de África e no Médio Oriente.
O desafio deste livro era montar um puzzle lógico, mas não necessariamente coerente - afinal de contas, estes quatro anos foram tudo e o seu contrário -, as dezenas de crónicas publicadas no
Diário de Notícias durante os últimos quatro anos, numa sequência de diapositivos sobre tudo o que envolveu a guerra na Síria. Organizado segundo uma sequência cronológica pouco rígida, os três capítulos que o compõem reflectem, respectivamente, o que se passou na vizinhança alargada entre Janeiro de 2011 e Maio de 2012, o que foi emergindo na Síria entre Junho de 2012 e Agosto de 2013, e o que se seguiu ao ataque com armas químicas e determinou a dinâmica interna e o comportamento da «comunidade internacional» interessada, entre Setembro de 2013 e Janeiro de 2015. Poucos momentos na história recente sofreram tantas alterações como estes últimos quatro anos no Norte de África e no Médio Oriente, foram tão baralhados, polarizados, apaixonados, levados ao extremo, regressados ao passado, levados para a frente, remexidos, repisados, movidos a ódio, a esperança e a desespero. Qualquer analista ficará grato por poder acompanhar, profissionalmente, tempos como este. Nenhum analista pode ficar satisfeito pelo facto de as coisas terem chegado a este caos. Análise e opinião estão, por isso, sempre ligadas. Este livro passa os últimos quatro anos em análise, tendo o centro de gravidade na Síria. Acompanha as revoluções na Tunísia, no Egipto e na Líbia, a ascensão e o equilíbrio entre as potências sunitas e xiitas, como a Turquia, a Arábia Saudita e o Irão, os posicionamentos de outras grandes potências externas como os EUA, a Rússia, a China, o Reino Unido, a França ou a Alemanha, o papel das organizações internacionais, como a ONU, a NATO, a União Europeia, a Liga Árabe e a União Africana, o roteiro de actores não‑estatais como o Hezbollah, o Hamas, o ISIS ou a Al‑Qaeda, o novo foco de jihadismo na Europa, que Madrid e Londres já nos tinham mostrado, mas que o ataque ao Charlie Hebdo veio aproximar do quadro sírio. Nada disto é estanque ou longínquo, e quanto melhor percebermos o que nos rodeia, melhores soluções encontraremos para lidar com os nossos problemas. O que proponho então ao leitor é que percorra estes fotogramas, para assim visionar as transformações na Síria. O que a rodeou, o que a minou e o que a matou, o que lhe sobreviveu e o o que lhe escapou. Ums Síria em pedaçõs.»