1.
Um certo pudor, uma certa síntese: o verso é uma forma de pudor sintético.
Muitas formas de usar o tempo: por vezes, uma forma de ferro, uma forma firme, que não quebra. Uma disciplina. A frase disciplinada, a de ferro e, do outro lado, a indisciplinada, a que abre múltiplos desvios enquanto avança. Água e ferro, pois, como exemplos contrários. Do ferro sabemos por onde avança logo pelo seu pelo início. Com a água não.
Ou pensar, ainda, numa folha sujeita ao vento forte e transtornado.
Ficar agora, então, nas frases que pelo início jamais adivinharemos itinerário e meta. Falamos da frase que foi engolida pelo sistema intuitivo (não-sistema portanto) da poesia.
Ao contrário de certas frases que são esse metal que não dobra, mecânicas, modo firme de produzir relatórios. Ao contrário, para onde vai este verso, como saber direcção e destino?
2.
Ser justo é também, entre outras coisas, estar atento ao que é importante.
3.
E sim: trata-se também de transmitir dignidade. Ler um verso, receber uma herança. Os olhos recebem uma herança. Essa herança pode até ser, quem sabe, uma forma de as palavras terminarem num certo grau de luminosidade. Luz que não cegue mas que esteja no ponto mais afastado do que é escuro. No limite da luz que cega, um passo atrás, um momento atrás. Luz que torna tudo claro, subitamente. Um passo atrás, tudo seria confuso, um passo à frente e ficaríamos cegos. Poesia, então, como o ponto certo em que os versos clarificam, sem explicar. Uma clareza não didáctica. Uma clareza que deixa atrás energia e estranhamento.
Ler um verso, receber uma herança.
4.
Não se trata de exercer uma actividade manual, mas quase. Poesia como acto manual de precisão; um relojoeiro que acertasse não os pequenos motores de relógio, mas as horas do que é mais valioso. Ou talvez melhor: um humano ao serviço da limpeza - que limpa o pó daquilo que é luminoso, eis uma hipótese para um poeta. Joseph Beuys dizia que o acto criativo era simplesmente o acto de tirar o pó de cima das coisas; porque as coisas que existem no mundo são naturalmente brilhantes.
As pessoas, diríamos - também elas - são naturalmente brilhantes; mas o pó que o tempo traz, que o desastre traz, que os vários fracassos ou mesmo o sucesso trazem, que os vários actos mais ou menos reles de uma vida, conscientes ou não, trazem, tudo isso vai cobrindo de pó espesso as pessoas, as pessoas mais brilhantes ficam apenas pó e por vezes um pedido de socorro. E é isso que o artista faz: atende ao pedido de socorro debaixo do pó: não inventa, limpa.
Não vai buscar a outro mundo o que é incrível e cria estupefacção. É neste mundo que o artista e o poeta trabalham e pesquisam. Tiram o pó das coisas, dos homens e das mulheres; tiram o pó de cima dos animais e da montanha. E lá de baixo, por vezes, sim, de novo, surge uma certa luz original, um brilho antigo que parece afinal uma invenção, uma descoberta. Mas não. É limpar, limpar.
Há também o trabalho de limpar o século; mas o século é grande, comprimento, altura, largura e volume, demasiado para o que podem as mãos humanas. E, por isso, modestamente, mas também arrogantemente, limpar cada dia, eis a tarefa - como se os dias fossem objectos manipuláveis, estes sim - dias como objectos com dimensão mínima para serem dominados pela manufactura de um escritor ou de um artista. De noite, o dia já está sujo, qualquer que ele seja - é necessário por isso limpar o pó; tirar de cima o que abafa e destrói. Limpar é criar.
Poesia como modo de tirar subitamente o pó tonto de cima das coisas.
5.
Escrever poesia como forma de delírio aplicado a alguns dedos que actuam sobre umas linhas mínimas de papel branco. Um delírio provocado, que actua em superfícies minúsculas.
Poesia também como forma de levar a linguagem ao seu destino, levar a linguagem pela mão até ao limite; para a frente, um precipício: mais um passo e esta frase cai, morre. Levar a linguagem até esse ponto, eis o trabalho de mão-dada à linguagem que um poeta exerce. Leva pela mão, como se fosse uma criança pequena, aquilo que é mais forte do que ele – a língua.
6.
Ler poesia, como toda a boa leitura, é uma forma de deslocação. Nos olhos, desde há muito se sabe, é que estão localizados as maiores das viagens. Com os pés avança-se de forma quantitativa, metro e mais metro, quilómetro e mais quilómetro. De cavalo, de carro, de comboio, de avião – eis outras formas quantitativas de viajar. Mas a qualidade essencial da viagem ali está, noutro lado, muitas vezes parada. Toda a viagem é um processo óptico; nada mais. Daí que ler poesia e ler grande literatura seja o verdadeiro processo de deslocação, não no espaço exterior medido com régua, mas no espaço do imaginário – espaço medido pela quantidade de imagens estimulantes que se produzem por minuto (unidade rigorosa: estímulo por minuto). Há versos, bem o sabemos, que multiplicam o número de imagens que um homem ou uma mulher têm na cabeça. E tal efeito de explosão; tal efeito de fazer de um verso muitas imagens, é um efeito muito químico, muito impossível e muito humano. Somos humanos também por isto. Somos humanos também para isto.
Quantas imagens por segundo, não na tela, mas no interior do crânio? - eis uma das questões e eis a medida que define e separa os grandes leitores dos médios e dos muito assim-assim. Quantas imagens um verso produz? Produção mesmo - como uma fábrica desregulada e insensata que se pusesse a multiplicar elementos no mundo que mal aparecem logo desaparecem. É que as imagens são isso mesmo, as imagens na cabeça são quadros ou fotogramas que não ficam em nenhum arquivo exterior concreto e físico; são imagens que se evaporam – que temos de recuperar pelo processo da memória ou do assalto imprevisto ao próprio inconsciente. Onde estão as mais belas imagens que eu tive na minha cabeça quando tinha vinte anos? E sim, por vezes, não se trata de um processo regular de memória, mas de pura sorte. Subitamente, na nossa cabeça, encontramos a imagem que há tanto tempo procurávamos. E certas vezes, essa descoberta só é possível porque existe um intermediário - um verso, por exemplo. Um verso que rapidamente desloca os nossos olhos. Olhos que deixam de ver, de ler, e passam a de-lirar - uma forma de leitura a altitudes bem acima da média.
Assim, os versos mais fortes que lemos muitas vezes funcionam como bússola, mapa que orienta: encontramos imagens na nossa cabeça, inventamos ou recuperamos imagens, porque o verso que lemos nos diz claramente onde é que na memória e no imaginário está o norte e o sul.
7.
Um modo de aproximação, uma forma de erotismo: uma palavra aproxima-se de outra e toca-a, ao de leve; uma primeira aproximação entre dois vocábulos que se querem conhecer, ou então que ainda não conhecem totalmente os desejos, a força e a timidez do outro. Como é que um humano se aproxima de outro que não conhece bem; como é que uma palavra se aproxima de outra que não conhece bem? Forma discreta de aproximação, o verso; coloca as palavras a velocidades baixas de aproximação, velocidades onde se produz o erotismo e a alusão, nunca o explícito.
8.
Uma forma, ainda, de as palavras não tocarem no solo. Uma forma de levitação estranha, levitação da linguagem - linguagem que parece não se apoiar no chão, linguagem que parece estar exactamente suspensa uns milímetros acima da página. Um quase milagre, mas bem humano: uma maneira insólita de as letras juntas se tornarem leves por uma associação de força e suspensão da respiração. Exactamente isto: como se as palavras suspendessem a respiração por minutos e, sem oxigénio, subissem ligeiramente - não como quem dá um salto, mas como quem parece ter já começado em pleno ar. Andar em bicos de pés, levitar em bicos de pés – quase não tocar no ar. Levitação da linguagem.
Sem qualquer esforço, as palavras não são atraídas nem para o dia nem para o chão. Talvez estejam distraídas, a pensar noutra coisa.
Gonçalo M. Tavares
Cézanne - O sonho do poeta