quarta-feira, 17 de junho de 2020

sábado, 13 de junho de 2020

Liberdade


Aí que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doura
Sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa.

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.
Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças…
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca…

Fernando Pessoa
16-03-1935

terça-feira, 9 de junho de 2020

Chove


Chove...

Mas isso que importa!,
se estou aqui abrigado nesta porta
ouvir a chuva que cai do céu
uma melodia de silêncio
que ninguém mais ouve
senão eu?

Chove...

Mas é do destino
de quem ama
ouvir um violino
até na lama.

José Gomes

segunda-feira, 1 de junho de 2020

Orlando Innamorato



O meu primeiro amor
Chamava-se Maria
Leonor;
O segundo, Sophia
Eulália Pimentel;
O terceiro, que lembro com fervor,
Chamava-se Rachel…
Era um anjo exilado, uma pomba sem fel!
De todas foi a mais amada …
Quando a perdi (levou-a a Morte), oh dor immensa!
Ficou-me a alma encarcerada
Dentro da praça d’Olivença,
Onde Ella tinha o berço e a virginal morada!
Das outras, a primeira, a Maria Leonor
(esta lembrança é um horror!)
Trahiu-me com um primo, um primo d’ella e meu,
Estoira-vergas desvairado,
Só por tocar guitarra e por cantar o fado
Melhor do que eu.
A segunda, Sophia Eulália Pimentel,
Donzella gothica e feudal,
Foi apenas a visão, sonho de Menestrel
Em velha Côrte medieval…
Muitas outras depois, muitas outras mulheres,
Doido romantico, adorei;
Ah! quantas ilusões e quantos malmequeres
Por todas ellas desfolhei!
Mas nenhuma deixou recordação tão doce
Como a linda Rachel…
Ah! se ella viva fôsse,
Quanta impura triaga, quanto fel
Eu teria evitado
Como homem casado!
Mas … lá diz o ditado:
Casamento e mortalha
No céu se talha,
Embora ás vezes o casamento
Seja um tormento,
Que mais parece fogo do Inferno
Que bico de obra das mãos do Eterno…
Foi por essa razão
Que simultaneamente e sucessivamente,
Com o meu coração
Atormentado e doente,
Me consagrei a amar
As mais diversas criaturas,
Mas já sem intenção de me casar:
Alem do mais, por serem duras
As minhas circunstâncias actuaes,
E bicudos os tempos para taes
Cavallarias.
Jamais, depois, tomei mulher senão a dias!
É um deleite a variedade…
Para o provar, meu tio abbade,
Com eloquencia e grande erudição, citava
A resposta que Luis XIV sempre dava
Ao confessor,
Quando este lhe exprobava inconstancias d’amor:
Nem sempre gallinha,
Nem sempre rainha…
Imagina, por isso,
Oh Thomásia! Oh sereia!
Já não digo a paixão, mas o immenso derriço,
Que a ti me prende e enleia,
Vendo que já lá vão três semanas e meia
Desde que estás ao meu serviço!

António Feijó

sexta-feira, 15 de maio de 2020

Ao piano - 48

Madeleine Lemaire - Intervalo na aula de piano,  ca. 1900

Madeleine Lemaire

Madeleine Lemaire foi uma aguarelista, mas é também conhecida por ter um salão onde aparecia o tout Paris.




terça-feira, 12 de maio de 2020

Canção tão simples

©Foto Luiz Carvalho

Quem poderá domar os cavalos do vento
quem poderá domar este tropel
do pensamento
à flor da pele?

Quem poderá calar a voz do sino triste
que diz por dentro do que não se diz
a fúria em riste
do meu país?

Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passa?

Quem poderá prender os dedos farpas
que dentro da canção fazem das brisas
as armas harpas
que são precisas?

Manuel Alegre - O Canto e as Armas. Lisboa: Dom Quixote, 1967

domingo, 3 de maio de 2020

A hipótese do cinzento


Num país a preto e branco
recomendaram-me o cinzento. Um recurso
extraordinário. Com a hipótese do cinzento poderia
ensaiar
soluções inusitadas –
experimentar o morno (que não é frio nem
quente)
explorar o lusco-fusco (que
não é noite nem dia) praticar a omissão
(que não é mentira
nem verdade). Preto e branco misturados permitiam
finalmente
viver em conformidade
desocupar os extremos (tão alheios à virtude)
liquefazer-me na turba
no centro na
média
dourada. Com a paleta dos cinzentos poderia
aprimorar a arte da sobrevivência que
(como os mansos bem sabem) é
não estar vivo
nem morto.

João Luís Barreto Guimarães
Nómada, Lisboa: Quetzal, 2018