É assim, amiga. Encontramo-nos quando calha nos bares de antigamente, deixando que sobre o tampo azul das mesas volte a pousar um baço cemitério de garrafas. Constatamos o pior, os seus aspectos. Corpos e livros que foram ficando por ler na voracidade da noite de Lisboa. De facto, crescemos em alcoolémia, acordamos tarde, em pânico, e perdemos os dias e os dentes com uma espécie de resignação. Não temos, ao que parece, serventia. Sorrimos um pouco, ao terceiro gin, como quem renasce para a morte, seus gestos de ternura ou de exuberância. Talvez tenhamos calculado mal o ângulo da queda, esta vitória sem nobreza dos venenos todos. Mas agora é tarde. Tudo fechou para nós, para sempre. O amor, o desejo, até o onanismo da destruição. Antes de procurares a esmola do último táxi, fica esta imagem parada, a desvanecer-se no frio mais frio da memória: não dois corpos sentados a trocarem medo, cigarros e palavras póstumas, mas duas vezes nada, ninguém, o silêncio da noite destronando as cadeiras onde por razão nenhuma nos sentámos. Os anos, amiga, passaram.
Manuel de Freitas
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