terça-feira, 28 de janeiro de 2014

O Dínamo de Kiev: uma equipa de futebol que preferiu morrer

E ainda há quem procure negar, ou esconder, o que foi nazi-fascismo.

Na Ucrânia, os jogadores do F. C. Start (nome clandestino do Dínamo de Kiev), hoje, são heróis da pátria e o seu exemplo de coragem é ensinado nos colégios. Os possuidores de entradas daquela fatídica partida têm direito a assento gratuito no estádio do Dínamo de Kiev.


A história do futebol mundial inclui milhares de episódios emocionantes e comoventes, mas seguramente nenhum tão terrível como o protagonizado pelos jogadores do Dinamo de Kiev nos anos 40.
Os jogadores jogaram uma partida sabendo que se ganhassem seriam assassinados e, no entanto, decidiram ganhar. Na morte deram uma lição de coragem, de vida e honra, que não encontra, pelo seu dramatismo, outro caso similar no mundo.
Para compreender a sua decisão, é necessário conhecer como chegaram a jogar aquela decisiva partida, e por que um simples encontro de futebol representou para eles o momento crucial das suas vidas.


Tudo começou em 19 de setembro de 1941, quando a cidade de Kiev (capital ucraniana) foi ocupada pelo exército nazi, e os homens de Hitler aplicaram um regime de castigo impiedoso e arrasaram tudo.
A cidade converteu-se num inferno controlado pelos nazis, e durante os meses seguintes chegaram centenas de prisioneiros de guerra, que não tinham permissão para trabalhar nem viver nas casas, assim todos vogavam pelas ruas na mais absoluta indigência. Entre aqueles soldados doentes e desnutridos, estava Nikolai Trusevich, que tinha sido guarda-redes do Dinamo.
Josef Kordik, um padeiro alemão a quem os nazis não perseguiam, dada a sua origem, torcia fanaticamente pelo Dinamo.
Um dia caminhava pela rua quando, surpreendido, olhou para um mendigo e de imediato se deu conta de que era o seu ídolo: o gigante Trusevich.
Ainda que fosse ilegal, mediante artimanhas, o comerciante alemão enganou aos nazis e contratou o guarda redes para que trabalhasse na sua padaria. A sua ânsia em ajudá-lo foi valorizada pelo jogador, que agradecia a possibilidade de se alimentar e dormir debaixo de um teto. Ao mesmo tempo, Kordik emocionava-se por ter feito amizade com a estrela da sua equipa.
Na convivência, as conversas sempre giravam em torno do futebol e do Dinamo, até que o padeiro teve uma ideia genial: pediu a Trusevich que em lugar de trabalhar como ele, amassando pães, se dedicasse a procurar o resto dos seus colegas. Não só lhe continuaria a pagar, como juntos podiam salvar os outros jogadores.
Percorreu o que restava da cidade devastada, dia e noite, e entre feridos e mendigos foi descobrindo, um a um, os seus amigos do Dinamo.
Kordik deu trabalho a todos, esforçando-se para que ninguém descobrisse a manobra.
Trusevich encontrou também alguns rivais do campeonato russo, três jogadores da Lokomotiv, e também os resgatou.
Em poucas semanas, a padaria escondia, entre os seus empregados, uma equipa completa.
Reunidos pelo padeiro, os jogadores não demoraram em dar o passo seguinte, e decidiram, alentados pelo seu protetor, voltar a jogar. Era, para além de escapar dos nazis, a única coisa que sabiam fazer bem. Muitos tinham perdido as suas famílias às mãos do exército de Hitler, e o futebol era a última sombra mantida das suas vidas anteriores.
Como o Dinamo estava fechado e proibido, deram um novo nome àquela equipa. Assim nasceu o F. C. Start, que através de contatos alemães começou a desafiar a equipas de soldados inimigos e seleções formadas no III Reich.
Em 7 de junho de 1942, jogaram a sua primeira partida. Apesar de estarem famintos e cansados por terem trabalhado toda a noite, venceram por 7 a 2. O seu rival seguinte foi a equipa de uma guarnição húngara, ganharam por 6 a 2. Depois meteram 11 golos a uma equipa romena. A coisa ficou séria quando em 17 de julho enfrentaram uma equipa do exército alemão e golearam-na por 6 a 2. Muitos nazis começaram a ficar chateados pela crescente fama do grupo de empregados da padaria e tentaram encontrar uma equipa melhor para lhes ganhar. Trouxeram da Hungria o MSG com a missão de derrotá-los, mas o F. C. Start goleou mais uma vez por 5 a 1, e mais tarde, ganhou por 3 a 2 na revanche.
Em 6 de agosto, convencidos da sua superioridade, os alemães prepararam uma equipa com membros da Luftwaffe, o Flakelf, que era uma grande equipa, utilizada como instrumento de propaganda de Hitler. Os nazis tinham resolvido encontrar o melhor rival possível para acabar com o F. C. Start, que já gozava de enorme popularidade entre o sofrido povo refém dos nazis. A surpresa foi grande, porque apesar da violência e falta de desportivismo dos alemães, o Start venceu por 5 a 1.
Depois desta escandalosa queda da equipa de Hitler, os alemães descobriram a manobra do padeiro. Assim, de Berlim chegou uma ordem de acabar com todos eles, inclusive com o padeiro, mas a hierarquia nazi local não se contentou com isso. Não queria que a última imagem dos ucranianos fosse uma vitória, porque acreditavam que se fossem simplesmente assassinados não fariam nada mais que perpetuar a derrota alemã. A superioridade da raça ariana, em particular no desporto, era uma obsessão para Hitler e para os altos comandos. Por essa razão, antes de fuzilá-los, queriam derrotar a equipa num jogo. Com um clima tremendo de pressão e ameaças por todos os lados, anunciou-se a revanche para 9 de agosto, no repleto estádio Zenit. Antes do jogo, um oficial da SS entrou no vestiário e disse em russo: - "Vou ser o juiz do jogo, respeitem as regras e saúdem com o braço levantado", exigindo que eles fizessem a saudação nazista. Já no campo, os jogadores do Start (camisa vermelha e calção branco) levantaram o braço, mas no momento da saudação, levaram a mão ao peito e no lugar de dizer: - "Heil Hitler!", gritaram - "Fizculthura!", uma expressão soviética que proclamava a cultura física.
Os alemães (camisa branca e calção negro) marcaram o primeiro golo, mas o Start chegou ao intervalo do segundo tempo ganhando por 2 a 1. 
Receberam novas visitas ao vestiário, desta vez com armas e advertências claras e concretas: 
- "Se vocês ganharem, não sai ninguém vivo" - ameaçou um outro oficial das SS. Os jogadores ficaram com muito medo e até pensaram não jogar a segunda parte. Mas pensaram nas suas famílias, nos crimes que tinham sido cometidos, na gente sofrida que nas bancadas gritava desesperadamente por eles e decidiram jogar. 
Deram um verdadeiro baile nos nazis. E no final da partida, quando ganhavam por 5 a 3, o atacante Klimenko ficou cara a cara com o arqueiro alemão. Deu-lhe um drible deixando o coitado estatelado no chão e ao ficar em frente à trave, quando todos esperavam o golo, deu meia volta e chutou a bola para o centro do campo. Foi um gesto de desprezo, de superioridade total. O estádio veio abaixo. 
Como toda Kiev poderia a vir falar da façanha, os nazis deixaram que os jogadores saíssem do campo, como se nada tivesse ocorrido. Inclusive o Start jogou dias depois e goleou o Rukh por 8 a 0. Mas o final já estava traçado: depois desta última partida, a Gestapo visitou a padaria. 
O primeiro a morrer torturado em frente a todos os outros foi Kordik, o padeiro. Os demais presos foram enviados para os campos de concentração de Siretz. Ali mataram brutalmente Kuzmenko, Klimenko e Trusevich, que morreu vestido com a camiseta do F. C. Start. Goncharenko e Sviridovsky, que não estavam na padaria naquele dia, foram os únicos que sobreviveram, escondidos, até a libertação de Kiev em novembro de 1943. O resto da equipa foi torturado até à morte. 
Ainda hoje, os possuidores de entradas daquela partida têm direito a um assento gratuito no estádio do Dinamo de Kiev. Nas escadarias do clube, conserva-se atualmente um monumento que saúda e recorda aqueles heróis do F. C. Start, os indomáveis prisioneiros de guerra do Exército Vermelho, aos quais ninguém pode derrotar durante uma dezena de históricas partidas, entre 1941 e 1942. 
Foram todos mortos entre torturas e fuzilamentos, mas há uma lembrança, uma fotografia que, para os torcedores do Dinamo, vale mais que todas as jóias em conjunto do Kremlin. Ali figuram os nomes dos jogadores. 
Em baixo a única foto que se conserva da heróica equipa do Dinamo e o nome dos seus jogadores. Goncharenko e Sviridovsky, os únicos sobreviventes, junto ao monumento que recorda os seus colegas.




Na Ucrânia, os jogadores do FC Start hoje são heróis da pátria e o seu exemplo de coragem é ensinado nos colégios.

(Recebido por email.)

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A Raça do Alentejano


Como é um alentejano? É, assim, a modos que atravessado. Nem é bem branco, nem preto, nem castanho, nem amarelo, nem vermelho.... E também não é bem judeu, nem bem cigano.
Como é que hei-de explicar?
É uma mistura disto tudo com uma pinga de azeite e uma côdea de pão: - dos amarelos, herdámos a filosofia oriental, a paciência de chinês e aquela paz interior do tipo "não há nada que me chateie"; - dos pretos, o gosto pela savana, por não fazer nada e pelos prazeres da vida; - dos judeus, o humor cáustico e refinado e as anedotas curtas e autobiográficas; - dos árabes, a pele curtida pelo sol do deserto e esse jeito especial de nos escarrancharmos nos camelos; - dos ciganos, a esperteza de enganar os outros, convencendo-os de que são eles que nos estão a enganar a nós; - dos brancos, o olhar intelectual de carneiro mal morto; - dos vermelhos, essa grande maluqueira de sermos todos iguais.
O alentejano, como se vê, mais do que uma raça pura, é uma raça apurada. Ou melhor, uma caldeirada feita com os melhores ingredientes de cada uma das raças. Não é fácil fazer um alentejano. Por isso, há tão poucos. É certo que os judeus são o povo eleito de Deus. Mas os alentejanos têm uma enorme vantagem sobre os judeus: nunca foram eleitos por ninguém, o que é o melhor certificado da sua qualidade. Conhecem, por acaso, alguém que preste que já tenha sido eleito para alguma coisa?

E já imaginaram o que seria o mundo governado por um alentejano? Era um descanso!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Eusébio e o Panteão

por Vasco Pulido Valente


O Panteão moderno, como quase tudo que é mau, foi inventado pela Revolução Francesa e pelas pomposas trasladações do pintor David. Mas, planeado para celebrar os deuses do novo renascimento da humanidade, o Panteão começou logo a dar sarilhos. Voltaire, o primeiro que lá entrou, conseguiu uma certa unanimidade. Mas Mirabeau, o segundo, acabou por ser rapidamente retirado, quando se descobriu que trabalhava para a Corte, e recebia dinheiro por isso. Para o substituir, os Jacobinos escolheram Marat, um terrorista assassinado por um virago virtuoso, Charlotte Corday. Felizmente, também este símbolo desapareceu com a fragorosa queda de Robespierre. E dali em diante, nem o Directório nem Napoleão mostraram um interesse particular em entronizar heróis. Parece que os mortos dividiam tanto como os ricos.
Como, de resto, demonstra o nosso Panteão, onde vários Governos recolheram uma extraordinária colecção para edificar a Pátria: Almeida Garrett, Amália Rodrigues, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro, Humberto Delgado, João de Deus, Manuel Arriaga, Óscar Carmona, Sidónio Paes, Teófilo Braga. Numa palavra, alguns símbolos (menores) do anticlericalismo, da Maçonaria e da República, que, ainda por cima, muitas vezes se detestavam e se guerreavam; e no meio disto Humberto Delgado, dois ditadores e uma cantora de fados, que não se percebe como acabaram numa sociedade tão esotérica e exclusiva. Se os mortos falassem, com certeza que estes mortos não se falariam.
Como se calculará, esta conversa vem a propósito do voto da Assembleia da República, que determina o depósito de Eusébio no Panteão. Contra a qual tenho quatro ou cinco objecções. Por um lado, não me cheira que Eusébio gostasse de se ver naquela companhia. Por outro, ninguém lhe pediu autorização para esse exercício de propaganda dos políticos, que ele talvez não apreciasse. E há mais. Há que Eusébio era um génio da sua profissão e de repente (tirando Garrett e Amália) o rodeiam de uma série de mediocridades, que nunca se distinguiram por terem ajudado a humanidade ou os portugueses. Sim, senhor, Eusébio merece um Panteão. Mas não aquele. Um Panteão no estádio do Benfica, ou perto dali, que as pessoas pudessem visitar sem medo de se irritar ou contaminar. Quanto ao Panteão Nacional, do que ele precisa com urgência é de um “saneamento” sucessivo, que o aproxime um pouco da realidade.

Público, 10.1.2014

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

No Café Saudade, em Sintra


Mais informações: 
http://poetrycoffeeshow.blogspot.pt/2013/12/alfred-tennyson-seguido-de-diario-da.html

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Remorsos de um encenador de teatro

por FILIPE LA FÉRIA


Muita gente me acusa de ser o culpado do estado de desgraça do nosso país por ter reprovado Pedro Passos Coelho numa audição em que eu procurava um cantor para fazer parte do elenco de My Fair Lady. Até o espertíssimo gato fedorento Ricardo Araújo Pereira já afirmou que eu devia ser chicoteado em público todos os dias até Passos Coelho desistir de ser primeiro-ministro, como insistentemente o aconselha o Dr. Soares.
Na verdade, confesso que em 2002, quando preparava os ensaios para levar à cena My Fair Lady fiz uma série de audições a cantores para procurar o intérprete do galã apaixonado por Elisa Doolittle, a pobre vendedora de flores do Covent Garden, personagem saída da cabeça brincalhona e maniqueísta de Bernard Shaw, genial dramaturgo que no seu tempo se fartou de gozar com políticos. Entre muitos concorrentes à audição, apareceu Pedro Passos Coelho de jeans, voz colocada, educadíssimo e bem-falante. Era aluno de Cristina de Castro, uma excelente cantora dos tempos de glória do São Carlos que tinha sido escolhida por Maria Callas para contracenar com a diva na Traviata quando da sua passagem histórica por Lisboa. As recomendações portanto não podiam ser melhores e a prova foi convincente. Porém, Passos Coelho era barítono e a partitura exigia um tenor. Foi por essa pequena idiossincrasia vocal que Passos Coelho não foi aceite, o que veio a ditar o futuro do jovem aspirante a cantor que, em breve, ascenderia a actor protagonista do perverso musical da política. Se não fosse a sua tessitura de voz de barítono, hoje estaria no palco do Politeama na Grande Revista à Portuguesa a dar à perna com o João Baião, a Marina Mota, a Maria Vieira, e talvez fosse muitíssimo mais feliz. Diria mal da forma como o Estado trata a cultura em Portugal, revoltar-se-ia com os impostos que o teatro é obrigado a pagar, saberia que um bilhete que é vendido ao público a dez euros, sete vão para o Estado, teria um ataque de nervos contra os lobbies da Secretaria de Estado da Cultura, há quarenta anos sempre os mesmos... não saberia sequer o nome do obscuro e discretíssimo secretário da Cultura oficial, não perceberia porque em Portugal não há uma Lei do Mecenato que permita aos produtores de espectáculos cativar os mecenas, tal é a volúpia cega dos impostos, saberia que cada vez mais há artistas no desemprego em condições miserabilistas e degradantes, que fazer teatro, cinema ou arte em Portugal se tornou um acto de loucura e de militância esquizofrénica. Mas a cantar no palco do Politeama estaria bem longe da bomba-relógio do Dr. Paulo Portas, cada vez mais fulgurante como pop-star, da troika, agora terrível e pós-seguramente medonha, das reuniões de quinta-feira com o Senhor Professor, do Gaspar que se pisgou para o Banco de Portugal, dos enredos do partido bem mais enfadonhas do que as animadas tricas dos bastidores do teatro, das reuniões intermináveis com os alucinados ministros, das manifestações dos professores, dos polícias, dos funcionários públicos, dos pescadores, dos estivadores, dos reformados, dos trabalhadores de tudo o que mexe e não mexe em cima deste desgraçado país, ah!, e das sentenças do Palácio Ratton que agora são chamadas para tudo, só para tramarem a cabeça intervencionada do pobre Pedrinho... não bastava já as constantes birrinhas do Tó Zé Seguro, as conversas da tanga do Dr. Durão Barroso, o charme cínico e discreto de Madame Christine Lagarde, as leoninas exigências da mandona da Europa para Bruxelas assinar a porcaria do cheque. Valha-me o Papa Francisco que tudo isto é de mais para um barítono!
Assumo o meu mais profundo remorso. Devia ter proporcionado ao rapaz um futuro mais insignificante mas mais feliz. Mas, tal como Elisa Doolittle, que depois de ser uma grande dama prefere voltar a vender flores no mercado de Covent Garden, talvez o nosso herói renegue todas as vaidades e vicissitudes da política e suba ao palco do Politeama para interpretar a versão pobrezinha mas bem portuguesa de Os Miseráveis!

PS. O artigo foi escrito em português antigo. No Teatro Politeama nem as bailarinas russas aderiram ao Acordo Ortográfico. * Encenador e dramaturgo. Diplomou-se em Londres com uma bolsa da Fundação Gulbenkian, foi diretor da Casa da Comédia. Com "What happened to Madalena Iglésias" iniciou e revitalizou o teatro ligeiro.

DN, 29.12.3013