segunda-feira, 23 de setembro de 2019

Ode ao tempo


A tua idade dentro de ti
crescendo,
a minha idade dentro de mim
andando.
O tempo é resoluto,
não faz soar o sino,
cresce e caminha
por dentro de nós,
aparece
como um lago profundo
no olhar
e junto às castanhas
queimadas dos teus olhos
um filamento, a pegada
de um minúsculo rio,
uma estrelinha seca
subindo para a tua boca.
Nos teus cabelos
enreda o tempo
os seus fios,
mas no meu coração
como uma madressilva
está a tua fragrância,
incandescente como o fogo.
Envelhecer vivendo
é belo
como tudo o que vivemos.
Cada dia
para nós
foi uma pedra transparente,
cada noite uma rosa negra,
e este sulco no meu ou no teu rosto
é uma pedra ou uma flor,
recordação de um relâmpago.
Gastaram-se-me os olhos na tua formosura
mas tu és os meus olhos.
Sob os meus beijos talvez tenha fatigado
os teus seios,
mas todos viram na minha alegria
o teu resplendor secreto.

Amor, o que importa
é que o tempo,
o mesmo que ergueu como duas chamas
ou espigas paralelas
o meu corpo e a tua doçura,
amanhã os mantenha
ou os desgarre
e com os seus mesmos dedos invisíveis
apague a identidade que nos separa
dando-nos a vitória
de um único ser final sob a terra.

Tradução de Luis Pignatelli.
in Odes Elementares, Lisboa, Publicações Om Quixote, 1977

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