quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

sexta-feira, 17 de janeiro de 2014

A Raça do Alentejano


Como é um alentejano? É, assim, a modos que atravessado. Nem é bem branco, nem preto, nem castanho, nem amarelo, nem vermelho.... E também não é bem judeu, nem bem cigano.
Como é que hei-de explicar?
É uma mistura disto tudo com uma pinga de azeite e uma côdea de pão: - dos amarelos, herdámos a filosofia oriental, a paciência de chinês e aquela paz interior do tipo "não há nada que me chateie"; - dos pretos, o gosto pela savana, por não fazer nada e pelos prazeres da vida; - dos judeus, o humor cáustico e refinado e as anedotas curtas e autobiográficas; - dos árabes, a pele curtida pelo sol do deserto e esse jeito especial de nos escarrancharmos nos camelos; - dos ciganos, a esperteza de enganar os outros, convencendo-os de que são eles que nos estão a enganar a nós; - dos brancos, o olhar intelectual de carneiro mal morto; - dos vermelhos, essa grande maluqueira de sermos todos iguais.
O alentejano, como se vê, mais do que uma raça pura, é uma raça apurada. Ou melhor, uma caldeirada feita com os melhores ingredientes de cada uma das raças. Não é fácil fazer um alentejano. Por isso, há tão poucos. É certo que os judeus são o povo eleito de Deus. Mas os alentejanos têm uma enorme vantagem sobre os judeus: nunca foram eleitos por ninguém, o que é o melhor certificado da sua qualidade. Conhecem, por acaso, alguém que preste que já tenha sido eleito para alguma coisa?

E já imaginaram o que seria o mundo governado por um alentejano? Era um descanso!

sexta-feira, 10 de janeiro de 2014

Eusébio e o Panteão

por Vasco Pulido Valente


O Panteão moderno, como quase tudo que é mau, foi inventado pela Revolução Francesa e pelas pomposas trasladações do pintor David. Mas, planeado para celebrar os deuses do novo renascimento da humanidade, o Panteão começou logo a dar sarilhos. Voltaire, o primeiro que lá entrou, conseguiu uma certa unanimidade. Mas Mirabeau, o segundo, acabou por ser rapidamente retirado, quando se descobriu que trabalhava para a Corte, e recebia dinheiro por isso. Para o substituir, os Jacobinos escolheram Marat, um terrorista assassinado por um virago virtuoso, Charlotte Corday. Felizmente, também este símbolo desapareceu com a fragorosa queda de Robespierre. E dali em diante, nem o Directório nem Napoleão mostraram um interesse particular em entronizar heróis. Parece que os mortos dividiam tanto como os ricos.
Como, de resto, demonstra o nosso Panteão, onde vários Governos recolheram uma extraordinária colecção para edificar a Pátria: Almeida Garrett, Amália Rodrigues, Aquilino Ribeiro, Guerra Junqueiro, Humberto Delgado, João de Deus, Manuel Arriaga, Óscar Carmona, Sidónio Paes, Teófilo Braga. Numa palavra, alguns símbolos (menores) do anticlericalismo, da Maçonaria e da República, que, ainda por cima, muitas vezes se detestavam e se guerreavam; e no meio disto Humberto Delgado, dois ditadores e uma cantora de fados, que não se percebe como acabaram numa sociedade tão esotérica e exclusiva. Se os mortos falassem, com certeza que estes mortos não se falariam.
Como se calculará, esta conversa vem a propósito do voto da Assembleia da República, que determina o depósito de Eusébio no Panteão. Contra a qual tenho quatro ou cinco objecções. Por um lado, não me cheira que Eusébio gostasse de se ver naquela companhia. Por outro, ninguém lhe pediu autorização para esse exercício de propaganda dos políticos, que ele talvez não apreciasse. E há mais. Há que Eusébio era um génio da sua profissão e de repente (tirando Garrett e Amália) o rodeiam de uma série de mediocridades, que nunca se distinguiram por terem ajudado a humanidade ou os portugueses. Sim, senhor, Eusébio merece um Panteão. Mas não aquele. Um Panteão no estádio do Benfica, ou perto dali, que as pessoas pudessem visitar sem medo de se irritar ou contaminar. Quanto ao Panteão Nacional, do que ele precisa com urgência é de um “saneamento” sucessivo, que o aproxime um pouco da realidade.

Público, 10.1.2014

quinta-feira, 9 de janeiro de 2014

No Café Saudade, em Sintra


Mais informações: 
http://poetrycoffeeshow.blogspot.pt/2013/12/alfred-tennyson-seguido-de-diario-da.html

sexta-feira, 3 de janeiro de 2014

Remorsos de um encenador de teatro

por FILIPE LA FÉRIA


Muita gente me acusa de ser o culpado do estado de desgraça do nosso país por ter reprovado Pedro Passos Coelho numa audição em que eu procurava um cantor para fazer parte do elenco de My Fair Lady. Até o espertíssimo gato fedorento Ricardo Araújo Pereira já afirmou que eu devia ser chicoteado em público todos os dias até Passos Coelho desistir de ser primeiro-ministro, como insistentemente o aconselha o Dr. Soares.
Na verdade, confesso que em 2002, quando preparava os ensaios para levar à cena My Fair Lady fiz uma série de audições a cantores para procurar o intérprete do galã apaixonado por Elisa Doolittle, a pobre vendedora de flores do Covent Garden, personagem saída da cabeça brincalhona e maniqueísta de Bernard Shaw, genial dramaturgo que no seu tempo se fartou de gozar com políticos. Entre muitos concorrentes à audição, apareceu Pedro Passos Coelho de jeans, voz colocada, educadíssimo e bem-falante. Era aluno de Cristina de Castro, uma excelente cantora dos tempos de glória do São Carlos que tinha sido escolhida por Maria Callas para contracenar com a diva na Traviata quando da sua passagem histórica por Lisboa. As recomendações portanto não podiam ser melhores e a prova foi convincente. Porém, Passos Coelho era barítono e a partitura exigia um tenor. Foi por essa pequena idiossincrasia vocal que Passos Coelho não foi aceite, o que veio a ditar o futuro do jovem aspirante a cantor que, em breve, ascenderia a actor protagonista do perverso musical da política. Se não fosse a sua tessitura de voz de barítono, hoje estaria no palco do Politeama na Grande Revista à Portuguesa a dar à perna com o João Baião, a Marina Mota, a Maria Vieira, e talvez fosse muitíssimo mais feliz. Diria mal da forma como o Estado trata a cultura em Portugal, revoltar-se-ia com os impostos que o teatro é obrigado a pagar, saberia que um bilhete que é vendido ao público a dez euros, sete vão para o Estado, teria um ataque de nervos contra os lobbies da Secretaria de Estado da Cultura, há quarenta anos sempre os mesmos... não saberia sequer o nome do obscuro e discretíssimo secretário da Cultura oficial, não perceberia porque em Portugal não há uma Lei do Mecenato que permita aos produtores de espectáculos cativar os mecenas, tal é a volúpia cega dos impostos, saberia que cada vez mais há artistas no desemprego em condições miserabilistas e degradantes, que fazer teatro, cinema ou arte em Portugal se tornou um acto de loucura e de militância esquizofrénica. Mas a cantar no palco do Politeama estaria bem longe da bomba-relógio do Dr. Paulo Portas, cada vez mais fulgurante como pop-star, da troika, agora terrível e pós-seguramente medonha, das reuniões de quinta-feira com o Senhor Professor, do Gaspar que se pisgou para o Banco de Portugal, dos enredos do partido bem mais enfadonhas do que as animadas tricas dos bastidores do teatro, das reuniões intermináveis com os alucinados ministros, das manifestações dos professores, dos polícias, dos funcionários públicos, dos pescadores, dos estivadores, dos reformados, dos trabalhadores de tudo o que mexe e não mexe em cima deste desgraçado país, ah!, e das sentenças do Palácio Ratton que agora são chamadas para tudo, só para tramarem a cabeça intervencionada do pobre Pedrinho... não bastava já as constantes birrinhas do Tó Zé Seguro, as conversas da tanga do Dr. Durão Barroso, o charme cínico e discreto de Madame Christine Lagarde, as leoninas exigências da mandona da Europa para Bruxelas assinar a porcaria do cheque. Valha-me o Papa Francisco que tudo isto é de mais para um barítono!
Assumo o meu mais profundo remorso. Devia ter proporcionado ao rapaz um futuro mais insignificante mas mais feliz. Mas, tal como Elisa Doolittle, que depois de ser uma grande dama prefere voltar a vender flores no mercado de Covent Garden, talvez o nosso herói renegue todas as vaidades e vicissitudes da política e suba ao palco do Politeama para interpretar a versão pobrezinha mas bem portuguesa de Os Miseráveis!

PS. O artigo foi escrito em português antigo. No Teatro Politeama nem as bailarinas russas aderiram ao Acordo Ortográfico. * Encenador e dramaturgo. Diplomou-se em Londres com uma bolsa da Fundação Gulbenkian, foi diretor da Casa da Comédia. Com "What happened to Madalena Iglésias" iniciou e revitalizou o teatro ligeiro.

DN, 29.12.3013