Entrevista de Abebe Selassie no Público de hoje.
O chefe de missão do FMI diz em entrevista ao PÚBLICO que as mudanças na Taxa Social Única não foram uma exigência datroika e avisa que não há "balas mágicas".
Para o chefe de missão do FMI na troika, o etíope Abebe Selassie, a desvalorização fiscal conseguida com a descida da Taxa Social Única paga pelas empresas e o aumento da contribuição dos trabalhadores é uma forma "criativa" de resolver o problema do défice e da competitividade. Mas, se o programa for apenas austeridade, a economia não vai sobreviver, avisa. E foi precisamente pelo receio de uma "pressão excessiva" sobre a economia que atroika flexibilizou as metas do défice.
A quinta avaliação da troika terminou com o anúncio de mais austeridade. Foi uma contrapartida da flexibilização das metas do défice?
Não, de forma alguma. Houve várias medidas orçamentais discutidas no âmbito do Orçamento do Estado de 2013. A Taxa Social Única foi uma delas. Mas, não, não foi nenhuma condição para mais nada. Foi uma ideia posta sobre a mesa. Achamos que é razoável e apoiamo-la.
Há um ano, o Governo não quis avançar com a desvalorização fiscal. Agora, decidiu tomá-la. Isto é um sinal de que as outras medidas estruturais não estão a funcionar?
Não, de forma alguma. Em grande parte, esta iniciativa surgiu devido à necessidade de a economia portuguesa melhorar a sua competitividade. A ideia original era ter uma desvalorização fiscal reduzindo a Taxa Social Única e aumentando o IVA. Mas o Governo precisava das receitas do IVA para cobrir o buraco orçamental. Foi por isso que decidiu não avançar. Na sequência da decisão do Tribunal Constitucional sobre os cortes dos subsídios, surgiu a ideia de retomar o corte da Taxa Social Única. Não tem nada que ver com a forma como vemos outros aspectos do programa a evoluir. A esse nível, estamos satisfeitos. Tem havido um sinal muito positivo das reformas do mercado do produto, foram feitas reformas do mercado laboral. Demora um pouco de tempo até terem efeitos. Mas é como temos sempre dito: o programa está a ser implementado.
Então, para restaurar a competitividade da economia portuguesa, se o Governo não fizesse esta redução dos salários, estaria tudo bem para a troika. Ou seja, Portugal seria na mesma capaz de restaurar a sua competitividade...
É muito difícil saber. A questão fundamental para nós é como responder aos desafios que Portugal enfrenta: competitividade externa e, ao mesmo tempo, o buraco orçamental. Esta ideia é uma maneira razoável de tentar responder aos dois. Dados os constrangimentos de políticas existentes, é preciso procurar formas criativas para tentar resolver o desafio dual que Portugal enfrenta. Esta é uma das ideias com que o Governo apareceu. Nos últimos dias, reparei no debate que está a decorrer. Não há nenhuma bala mágica, não há uma única medida que não tivesse causado também debate e discussão. Se o IRS ou o IRC tivessem sido aumentados, as pessoas teriam dito: mas porquê o IRS, porquê o IRC? Se fosse o IVA também se queixariam. Qual seria a alternativa? E não vejo isso no debate. Qualquer medida que fosse tomada teria também gerado um debate grande.
Teremos um corte permanente nos salários do sector privado e do público. Não teme que esta medida tenha um impacto maior na economia?
A concepção original da desvalorização fiscal também tinha subjacente um aumento do IVA. Alguém teria de pagar por isso também. Há trade-offs. E um aspecto importante desse trade-off é que esta medida tem de ser calibrada, para que o impacto sobre os pobres seja tido em conta.
No comunicado sobre a quinta avaliação da troika, dizem que é preciso evitar pressão excessiva sobre a economia. Mas, no curto prazo, o efeito na economia desta medida não será negativo?
Terá vários efeitos. Terá impacto sobre o rendimento disponível, mas, por outro lado, deverá melhorar a situação das empresas que estão em dificuldades e deverá aumentar a procura por emprego. Esperamos que tenha um efeito positivo nas margens das empresas, o que lhes permitirá fazer mais investimento e contratar mais. Não quero minimizar o efeito que esta medida terá nos rendimentos disponíveis. Mas imagino que esta seja uma das medidas mais difíceis que o Governo já tomou até aqui. E insisto: nesta conjuntura, qualquer outra medida que tivesse sido tomada teria gerado o mesmo debate.
Esta medida irá proporcionar a redução dos salários que a troika sempre defendeu que era necessária na economia...
Falo por mim, pelo menos: sempre disse que era muito importante ter uma melhoria da produtividade e uma contenção salarial. Mas se houver apenas austeridade, a economia não vai sobreviver. É imperativo que tenhamos também reformas que melhorem a produtividade. Boa parte do esforço do programa é nesse sentido. Resolver o problema da competitividade simplesmente reduzindo os salários não vai resultar.
A justificação do Governo para avançar com a desvalorização fiscal é que irá criar emprego. Mas a maioria das empresas em Portugal vendem para o mercado doméstico, que irá sofrer com a contracção da procura interna. Como se pode esperar um efeito positivo no emprego?
O que o Governo está a fazer é reduzir o custo do trabalho para os empregadores, isso deverá suportar mais emprego.
Mas não se tivermos também uma redução da procura...
Mas isso aplica-se a todo o tipo de medidas orçamentais. Se o Governo aumentar os impostos ou reduzir despesas, podemos dizer o mesmo: que reduz a procura interna. Imaginemos que esta desvalorização fiscal não era feita à custa do aumento das contribuições dos empregados, mas à custa do aumento do IRS. Também teria o mesmo efeito.
Para que serve então?
A questão é que queremos reduzir os desequilíbrios públicos, por isso tomam-se medidas orçamentais, e queremos que as finanças públicas sejam sustentáveis, de modo a que o país regresse aos mercados e a economia recupere. Se o Governo deixar de ser um peso na economia, irá permitir mais poupanças para o sector privado e mais investimento.
Mas a medida tomada é mais ou menos neutra em termos orçamentais. Por isso se questiona: irá mesmo ter impacto no emprego?
A nossa convicção é a de que sim. É que irá suportar a procura de emprego.
Esta medida foi posta em prática em algum outro país?
Várias formas de desvalorização fiscal foram postas em prática em outros países. Tipicamente, o modo como é feita é aumentando o IVA.
Mas na forma como foi feita, com aumento das contribuições dos trabalhadores, não têm nenhuma experiência?
Algo que já foi feito foi comparar a TSU praticada em Portugal com a de outros países. Os níveis estão adequados agora. A contribuição total não é excessiva quando comparada com os outros países.
Não estará a economia portuguesa a ser sujeita a uma experiência económica?
Não diria isso. Isto não está fora do mainstream. A dimensão do desafio aqui é formidável. É preciso coragem, nomeadamente por causa da dimensão da consolidação que precisa de ser feita para estabilizar a dívida pública. Mas o que foi decidido é no domínio de políticas económicas muito razoáveis.
Várias pessoas temem que, no curto prazo, o que tem importância são os cortes que têm sido feitos: os já feitos e os novos. Irá acontecer o mesmo que este ano, em que houve derrapagem no défice por causa da recessão?
Não se faz um ajustamento orçamental por que se quer. A razão pela qual é preciso é por causa dos desequilíbrios perigosos que a economia portuguesa acumulou desde 2001 e que fizeram com que os mercados deixassem de emprestar a Portugal. A questão é: estão estes desequilíbrios a ser resolvidos? Sim. O défice externo baixou de 10% para 3% ou menos este ano. E não foi uma correcção decorrente da compressão das importações. Aconteceu porque o crescimento das exportações foi muito bom. Preocupar-me-ia muito mais com um cenário em que o défice externo estivesse a cair apenas porque a procura por importações está a colapsar porque a procura interna é fraca. Aqui a performance das exportações tem sido forte, apesar dos ventos contrários fortes da Europa. E como as exportações líquidas são menos taxadas do que a procura interna, vemos uma queda nas receitas fiscais acima do esperado. Mas mesmo aí, em termos ajustados, vemos um grande ajustamento orçamental.
Na Grécia, a partir de certa altura, com o acumular de medidas, a população deixou de aceitar a austeridade, e as eleições mostraram isso. Em Portugal, a reacção a esta última medida foi muito forte...
Mesmo em tempos económicos bons, é difícil implementar um ajustamento orçamental, ainda mais numa situação em que um em cada três jovens estão desempregados. O ajustamento é sempre difícil, ainda para mais numa situação como a actual. O debate sobre onde deve incidir o fardo do ajustamento é compreensível. Desejava que houvesse uma solução, mas o ajustamento tem de acontecer num período de tempo razoável. Ainda assim, houve uma revisão das metas do défice. O que tentámos foi dar mais tempo ao ajustamento orçamental, de modo a evitar tensões excessivas na economia. As revisões que fazemos são precisamente para esse propósito. Nós apoiamos o anúncio feito pelo ministro de Finanças de que o sacrifício do ajustamento seja compartilhado por toda a sociedade de maneira equilibrada.
Mas não teme que o consenso social esteja em risco?
Tentamos sempre garantir que ouvimos os actores económicos e representantes da sociedade civil. E uma mensagem importante que retirámos daí foi a necessidade de mais tempo para o ajustamento ser realizado. Isso foi algo que foi feito. Outro ponto importante que retive é que há um entendimento e um consenso em torno do ajustamento. Ninguém nega isso. Há algum debate sobre o método e a abordagem.
Mas os parceiros sociais e os partidos da oposição também deixaram outra mensagem clara: não a mais austeridade…
Não se faz ajustamento porque se quer. É porque há uma necessidade, há uma dívida muito alta, que precisa de ser estabilizada, para que Portugal possa regressar aos mercados no próximo ano. Claro que há um debate sobre onde é que o fardo do ajustamento deveria recair, mas não acho que as pessoas estejam contra os objectivos globais do programa.
Como reage à possibilidade de o PS votar contra o Orçamento de Estado?
O que posso dizer? A base alargada de consenso social e político é importante. Mas é uma questão de política doméstica interna.
Mas que pode ter um grande impacto no programa... Há um padrão nas intervenções do FMI em vários países e que se viu na Grécia: o programa foi implementado, as pessoas começaram a ir para as ruas, os votos começaram a ir para os partidos anti-troika. Não vê isso a acontecer em Portugal?
Vemos o programa a correr bem até ao momento. Portugal ganhou credibilidade crescente pela forma como o programa foi implementado. As taxas de juro da dívida caíram de forma acentuada, a perspectiva de regresso aos mercados aumentou. A maturidade das emissões dos bilhetes de Tesouro tem vindo a ser aumentada. Há várias forças positivas no que está a acontecer na economia e isso irá permitir que Portugal siga um caminho diferente.
Para 2013, a flexibilização da meta do défice foi grande. Têm medo que 2013 seja um ano difícil com todos os cortes?
Se olharmos para a forma como o ajustamento evoluiu, foi enfrentando fortes ventos contrários da Europa. As condições em que Portugal fez o ajustamento foram extremamente negativas. E estes ventos contrários devem continuar em 2013 e ser um entrave ao crescimento. Mas ainda vemos o PIB a recuperar em meados do próximo ano.
A questão é: o que pode a política orçamental fazer neste contexto?
Como disse antes, o Governo tem de conseguir o equilíbrio entre levar a cabo o ajustamento orçamental que este país precisa e evitar que exerça uma pressão excessiva na economia. Foi isso que tivemos em conta para dar mais um ano para atingir os 4,5%.
O FMI está satisfeito com as medidas tomadas do lado da despesa? Ou continuam a faltar cortes permanentes na despesa?
As pessoas que não querem pagar mais impostos estão provavelmente a dizer isso. E as pessoas que beneficiam dos gastos públicos estão a dizer que não querem que o seu salário seja cortado e querem medidas do lado da receita. Temos uma visão geral de que o ajustamento deve incidir mais sobre o lado da despesa do que da receita.
Mas os cortes da despesa têm sido essencialmente cortes nos salários…
Há várias medidas a serem tomadas. Se olharmos para o envelope de despesa do Estado, uma boa parte é relacionada com a protecção social. Aproximadamente 40 porcento do orçamento do Governo é para isso. Outros 20 porcento são salários e o resto são custos de funcionamento e despesas de capital. Onde vamos cortar?
Considera que a estratégia de regresso aos mercados do Governo é credível?
Discutimos o plano do Governo e é credível. Acho que há a percepção de que o regresso ao mercado é uma coisa binária, mas é na realidade um processo gradual. Vários passos já foram dados, como a emissão de Bilhetes do Tesouro a 18 meses, e é algo que tem de continuar. Mas o indicador-chave que nos dá confiança são as taxas de juro, que estão ao nível mais baixo desde o início do programa. Claro que há risco de que este ambiente positivo do mercado não continue e haja novas tensões na zona euro. E, nesse sentido, a garantia dos líderes europeus de que irão continuar a ajudar Portugal, desde que o programa seja implementado, é uma rede de segurança importante. Caso isso aconteça, Portugal é um dos casos importantes em que a solidariedade europeia será posta à prova.
Mas continuam a acreditar no plano A, ou seja, o regresso de Portugal ao mercado em 2013?
Sim, absolutamente.
Um dos argumentos usados para não flexibilizar as metas do défice era que isso poderia levar os investidores a acreditar que Portugal não estava a cumprir o programa…
Penso que Portugal recuperou muita credibilidade agora. As taxas de juro caíram significativamente. Isso é um sinal da credibilidade que este programa tem.
Mas a questão é que, afinal, as taxas de juro não sobem por causa da flexibilização. Isto não é um sinal de que o alívio das metas poderia ter ocorrido antes? De que os mercados estão preocupados mais com o crescimento e menos com as metas do défice?
Em Janeiro e Fevereiro, quando as taxas de juro da dívida estavam muito altas, ninguém veio com o argumento de que os mercados estavam preocupados com o crescimento em Portugal, estavam preocupados com a sustentabilidade da dívida. Para nós, o importante é manter o foco na resolução dos desequilíbrios que trouxeram Portugal à situação actual e resolver estes desequilíbrios de forma duradoura e sustentável é o que vai trazer-vos credibilidade.
A troika sente-se mais confortável com a ideia de que o Banco Central Europeu (BCE) poderá usar o seu novo programa de compra de dívida em Portugal, ajudando o país a regressar aos mercados?
Tem impacto. Como Portugal deverá voltar aos mercados em 2013, o apoio do BCE será muito importante. Espero que o BCE esteja lá, quando chegar a altura.
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