A eurodeputada socialista diz que a Europa tem de definir uma agenda de política comercial externa muito mais agressiva.
As suas vítimas preferidas são Olli Rehn, vice-presidente da Comissão Europeia e comissário europeu para os Assuntos Económicos, e Mario Draghi, presidente do Banco Central Europeu (BCE). Não se cansa de lhes dizer que estão errados, que a receita para combater a crise é outra. No dia em que o Parlamento Europeu votou em Estrasburgo o pacote legislativo para reforçar a supervisão orçamental na zona euro, o famoso two-pack, contou ao i o que a faz correr e como acredita que é possível salvar a Europa e o euro. Antes foi monopolizada por um jornalista estrangeiro que elogiou o seu trabalho e lhe disse que tem o apoio do povo grego.
Afinal o que é que nos faz falta?
É preciso mudar a narrativa do que se está a passar na Europa, temos de perceber que muitas coisas mudaram.
Que coisas?
Entre outras, temos hoje condições para saber qual foi o resultado do funcionamento do euro. E se foi um grande sucesso em termos de afirmação como moeda internacional, o seu funcionamento faz-se numa arquitectura claramente incompleta. No fundo, a crise de 2008 vem mostrar que, além de haver desequilíbrios acumulados enormes, sobretudo entre o centro e a periferia, a União Europeia não tem um instrumento para reagir a uma crise.
E foi essa a leitura da maioria europeia?
O Parlamento, a Comissão e o Conselho europeus acharam que os países se tinham endividado excessivamente - o que é verdade -, não por uma razão específica mas apenas porque são perdulários ou loucos. E é por isso que a receita está a falhar. Houve um lado de punição excessiva nas medidas adoptadas, porque a leitura é castigar os países fraudulentos, preguiçosos. Mas esta explicação é simplista, populista e determinou uma receita completamente desajustada.
Disse que havia uma razão para o endividamento excessivo dos países do Sul. Qual?
Há uma perda progressiva da competitividade nos países do Sul e é esse problema que tem de ser tratado. E não há nenhum mecanismo automático dentro da União Europeia - menos ainda na zona euro - para repor a competitividade. O mercado interno é baseado na concorrência, que permite que ganhem os mais fortes, que institucionalmente são quem define as regras do jogo. Isto é, os requisitos são uniformes, mas isso não faz com que sejam ajustados a todos os países.
Desde o início do euro que se sabia que era preciso introduzir mecanismos de correcção…
Claro que sim. Esquecemos - ou quisemos esquecer - tudo o que sabíamos. Estávamos a trabalhar com uma área monetária não óptima e isso estava nas nossas agendas. Mas estávamos numa Europa muito diferente - com Delors à frente da Comissão, preocupadíssimo com uma convergência nominal acompanhada de uma convergência real, na qual hoje ninguém fala. Lembro-me de falar com o Dr. Mário Soares sobre isto, que ia gerar muitos desequilíbrios, e a resposta era sempre a mesma: “A Europa não é um projecto económico, é um projecto político.” Ou seja, esperava-se que os objectivos de coesão gerassem as respostas necessárias para as coisas não chegarem a este estado.
Mas chegaram. E sem coesão económica é possível existir coesão política, social?
Essa é a questão. As políticas de coesão dos anos 60 e 70 não podem ser as políticas de coesão do século xxi. Ainda hoje em Portugal não reconhecemos alguns programas como estratégicos e continua a haver muito enfoque nas transferências de dinheiro e muito pouco onde o devemos gastar. Nós temos culpas a muitos níveis.
Para que devemos querer o dinheiro?
Precisamos do dinheiro para finalizar algumas infra-estruturas, não muitas, mas temos de saber exactamente quais. Mas não podemos perder a dinâmica que perdemos ao nível da formação das pessoas, da ciência, da tecnologia e da inovação, tornar mais sofisticado o tipo de apoio que damos às empresas. Não sou nada a favor de fundos perdidos, mas sim de criar um ambiente horizontal com condições de competitividade. E temos de revisitar muito seriamente aquilo que deve ser a nossa agenda europeia, porque somos muito activos a negociar fundos e muito pouco activos a discutir a política comercial externa da UE. Como é que nos relacionamos com a Coreia, com o Japão, com a América Latina? Que activismo temos em exigir reciprocidade? O que é feito da nossa agenda de apoio ao desenvolvimento? Temos uma capacidade empresarial enorme em obras públicas, porque não fazer um lóbi imensíssimo junto da UE para trabalharmos, por exemplo, infra- -estruturas de abastecimento de água na política de apoio ao desenvolvimento a países africanos?
O lóbi devia ser feito pelos empresários?
Não imagina o que nós, aqui no parlamento, sentimos a falta de um activismo nacional para construir as políticas europeias. Por exemplo, tivemos legislação sobre produtos químicos, mas as empresas portuguesas estiveram completamente apáticas, desatentas, relativamente a uma política que ia mudar completamente as suas condições de competitividade.
Portugal relaciona-se mal com o centro de decisão europeu?
O pior que nos aconteceu no relacionamento com Bruxelas foi, por um lado, achar que lá existe uma espécie de anjo protector, que olha pelos nossos interesses, por outro, posicionarmo-nos como alunos: nós não somos alunos, somos accionistas. Temos de vir aqui e exercer os nossos direitos até ao limite.
O nosso peso de accionistas não é demasiado pequeno para grandes exigências?
Não, essa ideia é errada. O presidente da Comissão Europeia é um português, mas isso é só um exemplo. E se não faz diferença ser um português, que tenhamos isso em consideração da próxima vez que andarmos em campanhas nacionais para isso.
E faz diferença ou não?
Faz, acho que faz. O que não significa que seja um agente português, mas tem outra sensibilidade. Agora não me digam que Portugal é um país muito pequenino e não tem influência. Neste momento, dos deputados socialistas coordenadores, isto é, porta-vozes dos socialistas europeus, estou eu eleita pelos meus colegas da Economia, a Ana Gomes nos Direitos e Liberdades, o Capoulas Santos na Agricultura e Vital Moreira no Comércio Externo. Em sete pastas, três são coordenadores eleitos pelos colegas e um é presidente… Somos um país completamente médio, se não, que dirá Malta, Chipre ou a Lituânia. E fazemos lóbi, eu tenho feito passar coisas que nunca ninguém diria que era possível.
Ouvi-a dizer que o facto de existir no Parlamento Europeu uma maioria de direita tem feito chumbar muitas propostas. Quer explicar melhor?
Em Portugal a direita tem uma base social-democrata, que é como se chamam na Europa os socialistas, que têm uma base europeísta e até cristã-democrata. A Europa da globalização gerou uma direita que tem um ADN completamente diferente, que acredita no livre funcionamento dos mercados, na ausência de regulação, é o liberalismo puro e duro. Foi debaixo deste dogma que a Europa se absteve de regular os mercados financeiros e de impor algumas regras aos bancos, aos supervisores, etc. A maior praça financeira mundial deixou acumular tensões nos mercados financeiros e, voluntariamente, rejeitou qualquer intervenção. É disto que falo.
O governo português é culpado da situação do país?
Há uma coisa que tenho dito: neste governo, como no anterior, a margem de manobra é muito mais estreita do que os cidadãos pensam. Grande parte da agenda é determinada a nível europeu, para o melhor e para o pior. Neste momento, a agenda europeia impõe uma lógica de austeridade. Aquilo que critico no governo português é o modo quase entusiástico como recebe as receitas impostas: queriam ir além do que a troika recomendava e ainda diziam que era a única receita possível. Só ao fim destes anos de penalização sucessiva e de degradação da economia, do emprego e das questões sociais é que, finalmente, começamos a levantar um bocadinho a cabeça e a dizer vamos lá negociar. Só perante o desastre. A vantagem deste seguidismo é que agora está provado que a receita da Comissão Europeia está errada.
A troika não é só a Europa…
Não, mas uma coisa é o Fundo Monetário Internacional, que já mudou o discurso - embora a circulação de informação destas instituições seja muito estranha, o que as faz parecer quase es- quizofrénicas: a senhora Lagarde e o senhor Blanchard fazem uma série de considerandos sobre os multiplicadores e depois o representante do FMI na troika (que não sei se lê os jornais) diz uma coisa completamente diferente. A Comissão, honra lhe seja feita, manteve sempre a mesma posição: é ela que está certa, mude-se o mundo.
Se a receita não é a austeridade, qual é o caminho?
Parece-me fundamental salvaguardar os elementos estratégicos de competitividade, que são a mão-de-obra qualificada. Preservar a geração e a empregabilidade da geração que pode fazer a diferença em termos de um país especializado em produtos desqualificados e assentes em mão-de-obra barata. Quando é que viu, não em casa, mas aqui em Estrasburgo, em Bruxelas, um activismo sério para ajudar a definir a política comercial externa da União Europeia e para obrigar a UE a impor fora as mesmas regras que impõe à produção dentro?
E porque é que a UE não se impõe?
Porque há aqui um enorme conflito de interesses. Se olhar para o Brasil, sabe o que o Brasil quer da globalização. Se olhar para a China, sabe perfeitamente o que a China quer da globalização, a América sabe o que quer da globalização. E o que é que a Europa quer da globalização? Não quer nada, porque vive na confiança de que se alimenta do seu mercado interno e que será sempre um partner muito grande que pode ter a generosidade de abrir as suas portas àquilo que vier. Isto, na prática, significa que há interesses absolutamente dominantes, que são os dos importadores.
Representados por quem?
Representados por ingleses e nórdicos, que dominam a agenda comercial externa da União Europeia. Além dos interesses dos mercados financeiros, que estão muito ligados aos interesses dos importadores. Estes interesses, aliados à história recente da UE, sobrepuseram-se completamente à agenda dos produtores, que também não se souberam organizar. Basta ver, nos próprios países, o que valem os produtores e o que valem os comerciantes. No plano nacional, e não queria estar aqui a referir nomes, quais são os homens mais ricos do país, são produtores ou comerciantes? A agenda é de comércio ou de produção? E esta agenda tem de ser feita, porque os mercados que crescem estão fora da UE. Temos de ser agressivos com o exterior para conseguir penetrar com os nossos produtos nesses países.
Portugal não está sozinho?
Nós, portugueses, temos aliados... Na Espanha e até em certas indústrias alemãs, porque a Alemanha foi o único país que nunca desistiu de ser produtor e tem muito bem definido o que é para produzir internamente e o que é para importar.
São pragmáticos?
São pragmáticos e têm liderança e usam essa liderança. A Alemanha é o único país que verdadeiramente tem um grande mercado interno, tem um grande poder institucional e utiliza o espaço da União para conseguir o melhor dos vários mundos.
A Europa está sem rumo?
A falta de pensamento estratégico, que vem um bocadinho de uma certa inércia de uma fase em que a Europa era superpoderosa e em que eram os sucessivos aperfeiçoamentos do mercado interno e os sucessivos alargamentos aquilo que gerava o mercado interno, transformou-nos nuns seres um bocadinho crédulos, sendo essa ingenuidade liderada e controlada por meia dúzia de actores que de facto estão a fazer um negócio da China com a estratégia que a Europa está a seguir.
Mas são 27 países, em breve 28, e ninguém se insurge?
Jean Claude Juncker fez declarações de uma gravidade e um dramatismo muito grandes quando disse que este é o ambiente que se vivia antes da guerra. Isto já são sinais de enorme preocupação do homem que esteve à frente do Eurogrupo, mas que, de certo modo, não fez o suficiente neste contexto para mudar a agenda. Mas há três anos era impossível eu dizer algumas coisas que digo agora, seria considerada uma esquerdista tresloucada. Hoje consigo provocar discussões que antes não existiam. Mesmo alguns alemães já se questionam.
A Europa reforça a supervisão, mas continua com um orçamento limitado. Como é possível relançar a economia?
Com um orçamento de 1% não tem qualquer capacidade de fazer o relançamento da economia, nem sequer de garantir os serviços públicos mínimos de saúde, de educação e de bem-estar aos cidadãos. Tem de haver recursos próprios, mas enquanto cada país tira do seu orçamento o que põe na União Europeia e recebe o mesmo que lá pôs não vale a pena.
A Alemanha tem a sua agenda interna...
Está tudo pendente. Neste momento no Parlamento Europeu não se faz nada até às eleições na Alemanha.
E Portugal, como fica?
Em Portugal ainda temos coisas absolutamente ilógicas. É óbvio que baixar os salários e as pensões da forma violenta como se está a fazer não tem praticamente nenhum impacto no perfil das exportações, só esmaga a procura interna. As exportações representam 37% do PIB e nunca podem ter o papel de arrastamento sobre o resto da economia. Isso seria perigoso numa Bélgica ou numa Holanda, onde as exportações representam 90% ou mais do PIB. O discurso é que somos uma pequena economia aberta, mas não somos, somos uma pequena economia fechada.
Portugal precisa ou não de reformar o seu Estado social?
Não gosto da expressão. Há elementos que precisam de ser reformados, mas num ambiente em que as pessoas saibam quanto tempo demora a reforma, o que se quer atingir, quanto custa, o que acontece aos excedentários… Sou pouco adepta de coisas telúricas, gosto mais de coisas concretas. Este governo não estava preparado para ser governo.
Que coisas concretas?
A reforma das câmaras, das juntas de freguesia, das regiões ou dos níveis de agregados de municípios, com que competências e com que orçamento... Isto é um tema sobre o qual fazemos de dia e desfazemos de noite. É preciso assentar o que queremos. Justifica-se a quantidade de municípios que temos? Essa é que era a recomendação da troika. Substituímos isso por uma agregação de freguesias.
Assim logo à partida, que câmaras poderiam desaparecer?
Faz sentido ter Porto, Gaia, Matosinhos tudo separado? Se calhar não faz. O país tem de ganhar economias de escala. Digo isto há vários anos e já criámos municípios entretanto - a Trofa surgiu porque há sempre alguém que quer estar com mais autonomia. Isto tem de ser controlado. Estamos a fazer mudanças onde não dói, aquilo que estamos a fazer é marginal à essência do problema. Corremos o risco de, depois de ter feito este esforço todo, chegar ao fim e não termos feito as reformas estruturais que interessavam. Há reformas que estavam em curso e por motivos partidários as pessoas foram maltratadas e perderam a vontade de voltar a pegar nisto.
Por exemplo?
Por exemplo a reforma da educação que a ministra Maria de Lurdes Rodrigues esteve a fazer era estrutural e a sério. Só que é fácil fazer levantar as populações por todos os desconfortos que existem. Mas tínhamos obrigação de consensualizar uma coisa destas. É preciso sentar os parceiros à volta da mesa e criar um ambiente de maturidade muito sério.
Como é que Bruxelas sente Portugal?
Criou-se um clima de pânico e em momentos de pânico é muito difícil ter capacidade negocial. Queremos muitos fundos estruturais, mas depois de tanto debate sobre o TGV o aeroporto - e eu também sou contra o aeroporto, já quanto ao TGV não tenho uma posição tão radical -, não temos na agenda uma alternativa ao que cai. Mas temos um projecto louco, do porto da Trafaria, que é um disparate. É normal que um operador de portos tente influenciar todos os governos do mundo para fazer portos, se for construtor de estradas vai tentar influenciar para fazer auto-estradas. Cabe aos governos ter centros para não comprarem tudo o que se vende. Isto é um grau de vulnerabilidade inadequado à gravidade da situação e à maturidade que já devíamos ter a nível de país.
De que precisa Portugal?
Portugal precisa de financiamentos para fazer reformas estruturais e estão a ser estudados esses apoio financeiros aos diversos países. Mas é preciso saber para reformar o quê: justiça, cobrança de impostos, informatizar a Segurança Social...
Quais são, para si, os pontos sine qua non?
Neste momento há dois assuntos críticos: abrandar o processo de austeridade e mexer na atitude dos bancos perante o crédito, porque as taxas de juro são baixas mas os prémios laterais e a negação de crédito é enorme. Portanto, a esse nível, não há alternativa.
Mas isso não se pode fazer por decreto, ou pode?
Não sei que consequências vai ter esta investigação que finalmente foi desencadeada [cartelização na banca], mas tardava a acontecer alguma coisa a este nível. Precisamos de começar a acreditar nos supervisores - a CMVM tem sido muito activa em vários dossiês e é no quadro português, estranhamente, um actor que exerce os seus poderes com alguma musculatura. O Banco de Portugal tem tido uma posição muito moderada, mas ainda não foi testado nesta fase. Precisamos de ter reguladores e supervisores com dentes e que isso tenha um rescaldo em toda uma estrutura judicial, que lhe dê uma resposta rápida. Tem de haver um contraponto aos lóbis do deixa andar.
Voltando ao financiamento, os bancos têm de cumprir regras mais apertadas numa altura em que as empresas e as pessoas precisam de mais financiamento.
Temos uma Caixa Geral de Depósitos. Há necessidade, com a maior das urgências, de criar um espaço onde as empresas que são ainda viáveis possam financiar-se a preços aceitáveis.
Como vê a criação de um banco de desenvolvimento?
Não vejo necessidade nenhuma de mais bancos se o Estado tem a CGD, que é uma entidade poderosa. Não é possível criar dentro da Caixa um espaço específico para fazer no imediato, já, algum trabalho neste sentido? Além de que são mais conselhos de administração, mais remunerações, mais uma entidade híbrida, quando temos a CGD, que ainda não se viu de que maneira nesta crise está a ser diferente dos outros bancos comerciais.
E devia ser diferente?
Eu penso que poderia ser diferente. Aqui era, no fundo, conceder crédito às pequenas e médias empresas, com uma remuneração que não seja proibitiva e que as liberte desta angústia de, porque não têm crédito, não poder investir.
Entrevista a Isabel Tavares, 20 de março de 2013
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